MULHERES DESCARTÁVEIS
O vale tudo emocional que vivemos nos últimos anos não é lugar para moças de família
Michel Houellebecq é um escritor francês de péssima reputação entre as mulheres. Escreveu Partículas Elementares, livro em que lança mão de uma ciência duvidosa (a sociobiologia) para defender uma tese controversa: a de que a revolução sexual liquidou as chances de felicidade feminina.
O livro sugere que as mulheres se tornaram objetos de prazer descartáveis, que perderam o amparo que as estruturas tradicionais costumavam oferecer. Envelhecem, perdem o atrativo e a função reprodutiva e vivem à mercê dos filhos, cada vez menos respeitosos. É pessimista a não poder mais. Quem quiser ter contato com uma versão adocicada do livro pode pegar o filme nas locadoras, com o mesmo nome.
Desde a primeira vez em que tive contato com as idéias de Houllebecq elas me deixaram um gosto esquisito na boca. Por me considerar profundamente feminista, briguei silenciosamente com elas. Por ser, como o autor, um tanto pessimista, não consegui me livrar inteiramente da impressão de que as mulheres, de alguma forma, estão sendo enganadas pela história: no momento da sua maior conquista, no momento da liberdade e da igualdade de direitos, muitas se descobrem de mãos e vidas vazias.
Na semana passada aconteceram duas coisas que reforçaram meu pessimismo.

Outra coisa que me deixou pessimista foi a conversa com uma amiga querida que já passou dos 40, tem filhos pequenos, nenhum marido e acabou de romper um namoro importante. Ela está desolada, tomada pela sensação de que as dores de amor são cada vez maiores, o tempo de recuperação é cada vez mais longo e a paixão, que viria a enterrar a dor passada, é cada vez mais rara. Os filhos dão trabalho, a vida é dura e ela já não se sente atraente como costumava ser. Eu tentei animá-la o quanto pude, mas saí da conversa mais pesado do que entrei. Pensei no livro de Houllebecq.
Hesito em escrever o que planejei escrever agora. Faltam palavras e a convicção profunda. O sentido do que eu quero dizer me parece francamente conservador, ainda assim talvez seja a coisa certa a ser dita. Talvez. Considerando, então, que as dúvidas podem ser melhores que as certezas, avancemos.
Pode ser que a revolução dos costumes tenha traído as mulheres, como sugere Houllebecq. Digo isso e me lembro, imediatamente, de mulheres bem-sucedidas e livres que eu conheço. Elas tocaram sua vida sem se lixar para preconceitos e para a tutela dos homens. Criaram seus filhos de forma não convencional. Tiveram maridos, mas nunca foram prisioneiras de casamentos. São filhas dos anos 60. Agora estão chegando aos 50 ou 60 no controle das próprias vidas. Têm dinheiro, prestígio social e familiar e – não menos importante – estão acompanhadas. São felizes, me parece. Mas talvez sejam exceções: personalidades exuberantes, talentos privilegiados que teriam dado certo em qualquer época e qualquer ambiente.
A maioria das mulheres acima de 40 que eu conheço não é assim. A maioria é gente normal, que viveu as liberdades herdadas dos anos 60 e 70 como teria vivido o conservadorismo anterior, com naturalidade. Não eram revolucionárias. Elas acreditaram na ideia da época de que poderiam ser sexualmente livres, economicamente independentes e que tinham pleno direito à felicidade. E não foi bem assim que aconteceu. O sexo escasseia quando se deixa de ser jovem e bonita. A independência econômica ainda é uma miragem para homens e mulheres. E a felicidade, agora se sabe, não é sinônimo de liberdade e igualdade. Talvez seja o contrário, o que seria muito humano.
Parte dos problemas femininos se deve ao comportamento dos homens. Antigamente, eles ficavam no casamento, ainda que não ficassem necessariamente em casa. Manter os filhos era obrigação primordial do pai. Agora os homens vão embora e frequentemente deixam às mulheres a tarefa de criar os filhos. E está tudo bem. Não dão dinheiro suficiente e nem atenção suficiente. E está tudo bem. Na cultura de “vamos ser felizes”, herdada dos anos 60, que se espalhou por todas as classes sociais, a obrigação essencial de cada um é com a própria felicidade. A noção de dever e de obrigação vai se esgarçando até não significar coisa nenhuma. Lealdade (sobretudo sexual e afetiva) é uma palavra anacrônica. Vem junto com “traição” na lista daquelas que se usa entre parênteses.
A diva Naomi Campbell

Lembro de uma história exemplar que me contaram anos atrás. Está o pescador bonitão na praia, fumando um baseado com uma turista no colo, quando chega a mulher dele, completamente descontrolada. Ela berra com o sujeito que ele não tem ido pra casa, que ela e as crianças estão passando necessidade, lembra que ele é o marido dela, que ele é pai, pelo amor de Deus! Incomodado, mas sem tirar a gatinha do colo, o pescador responde à mulher: “Pô, para de me sufocar. Me deixe em paz. Eu preciso de espaço”... Nessa história tem uma mulher que chora e outra mulher sentada no colo do pescador. Além de um pescador safado.
Outra história, essa tirada de um filme: no final de "Terremoto" (de 1974), um sexagenário interpretado por Charlton Heston tem de escolhe entre salvar-se com a jovem e linda amante ou encarar a morte em companhia da mulher envelhecida (e chata) de toda a vida, interpretada por Ava Gardner no crepúsculo da sua beleza. O sujeito hesita por uma fração de segundo e mergulha para morrer com a velha companheira. Se hoje Tarantino filmasse essa cena seria chamado de exagerado. Lealdade saiu de moda.

É claro que a culpa pela infelicidade feminina não é dos homens. Nas últimas décadas as mulheres puderem fazer escolhas. Elas decidiram com quem e como gostariam de viver. Quantas vezes iriam casar ou se separar. Quando e em que circunstância seriam mães (esquecendo, por um segundo, que o aborto ainda é crime no Brasil). Se deixaram de perseguir a própria carreira (ou o sonho) com a dedicação que ela (ou ele) merecia, isso foi escolha, não imposição. Pelo menos na classe média. Se perseguiram a carreira e agora se sentem sozinhas, também isso foi resultado de escolha. O segundo filho, o casamento tedioso, a solidão apavorante: tudo decorre das escolhas. O amor que arrebata também. A família feliz também. A estabilidade. A luta na trincheira do lar. O que não é escolha é azar, como o abandono. Ou sorte, que também existe.

Assim tem vivido a minha geração. Ela fez e faz escolhas dentro daquilo que Brecht chamava de “o tempo que nos foi dado viver”. E eu acho que esse tempo tem beneficiado mais os homens que as mulheres. E, dentre as mulheres, tem beneficiado mais aquelas que fizeram opções mais conservadoras. Ainda é arriscado para as mulheres viver com a liberdade dos homens. O custo dos erros e dos azares não é o mesmo. E, ao longo do tempo, vai se tornando mais alto para as mulheres. Esse é o tema de Houllebecq. Homens não engravidam e raramente ficam com os filhos. Homens viajam mais leve pela vida e pelo mundo do trabalho. Homens (ainda) não dependem tão fundamentalmente da juventude e da beleza. Usufruem mais do mundo e por mais tempo. Estão mais bem aparelhados para viver o cada-um-pra-si do planeta egoísmo.
“Eu vejo que aprendi o quanto te ensinei.” Renato Russo
A que isso nos leva? A uma segunda revolução dos costumes, eu acho. Na primeira, quarenta anos atrás, homens e mulheres ficaram “iguais”. Na segunda, talvez a gente descubra que as mulheres – as mães dos nossos filhos – precisam de um grau adicional de proteção social, de lealdade afetiva e de celebração nas suas funções tradicionais. Sem hierarquias. Sem “ordem natural” masculina. Gente com poder igual, mas com necessidades diferentes.
Abaixo Ivan Martins
Em 1875, descrevendo uma utopia, Karl Marx escreveu que a sociedade ideal deveria dar às pessoas de acordo com as sua necessidade e receber delas de acordo com a sua capacidade. Talvez muitas mulheres estejam dando mais do que deveriam e recebendo menos do que precisam, em vários terrenos. Talvez por isso as pesquisas mostrem que elas estão cada vez mais tristes. Talvez por isso a minha amiga esteja destroçada. A simpática barbárie de costumes em que vivemos nos últimos anos pode não ser um bom ambiente para moças de família. Ou para as moça construírem direito suas famílias.

Por: Ivan Martins, editor-executivo da revista ÉPOCA
Nossa Thiago, que maravilhoso texto!!!
ResponderExcluirMe identifiquei tremendamente...
Lembrei-me de um trecho do livro "A paixão segundo G.H." de Clarice Lispector:
"...estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem... Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda."
É...coisas para se pensar e sentir, mesmo que caoticamente...
Beijos
Envelhecem, perdem o atrativo e a função reprodutiva e vivem à mercê dos filhos...
ResponderExcluirQue horror!!!
Sinceramente, é muito mais fácil ser homem! Ah, se é!!! Mas não troco o meu sexo por nada! Tiro de letra as dificuldades de ser mulher... Amo ser mulher. Eu me AMO. Rsrsrs.
beijão Thiago e bom finde *-*
Nossa! Refleti de modo perplexo no início, mas é a real.
ResponderExcluirAliás, normalmente tua escrita parece devaneio quando é fato.
Bjs querido, ótimo fds.
Mih
Ah! E Julis eu concordo: é muito mais fácil ser homem, mas não troco meu gênero por nada!!! rsrs
ResponderExcluirOlá Thiago,
ResponderExcluirLi seu texto, na verdade, a mulher só conhece o marido que tem no momento em que decide dolorosamente, mas necessário, separar-se dele.
A partir desse momento, ela que era a esposa, companheira, e se dedicava a ele e ao lar, trabalhando inclusive para complementar a renda familiar, passa a ser, a SOVINA, INTERESSEIRA, e não tem direito a nada...
É isso, mulher separa do marido, e o safado, diz em alto e bom som, "voce ficou aqui porque quis, não lhe dou nada, e se insistir te mato"
abraço.
Muito legal seu blog, Thiago. Ja te adicionei e estarei te visitando sempre que puder. Abracos.
ResponderExcluirSou casada com um mineiro aqui nos States, tambem.Abracos
Oi, saí linkando e caí aqui. vou conhecer melhor e depois comento, ok?
ResponderExcluirAiai... o que dizer?!
ResponderExcluirSempre provocando, né?!
Manter os filhos era obrigação primordial do pai. Agora os homens vão embora e frequentemente deixam às mulheres a tarefa de criar os filhos. E está tudo bem. Não dão dinheiro suficiente e nem atenção suficiente.[2]
Acho que aos homens também cabe retomar as rédeas daquilo que lhes pertence, como o comprometimento com os filhos, a paternidade. Tomamos espaços e vcs, muito passíveis (até porque conveniente), aceitaram.
Realmente são tempos difíceis para as mulheres.
Como diria a minha mãe: "na próxima quero nascer homem e casar com uma mulher igualzinha a mim!" hahahaha
Beijos, querido!
Olá, como vai?
ResponderExcluirObrigado, será sempre bem vindo ao Cine Freud.
Interessante as tuas observações que, melancólicas sim, mas igualmente realistas.
Uma ótima semana!
Ótimo artigo.
ResponderExcluirMoças de família, rs.
ResponderExcluirQuanto tempo não ouvia isso.
Linda foto. A primeira. Adoro! ;)
Pior do que nao ouvir é nao ver, Vanessa.
ResponderExcluirrsss
Também adoro. Eu amo Closer.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExistem teses e pesquisas mundo afora sobre esse tema: Felicidade. Não vejo a infelicidade mais ou menos presente nas mulheres, homens também passam a viver infelizes sem o companherismo. A liberdade vem gerando coisas estranhas, como a assexualidade dos muitos jovens. Meninos sem tesão e meninas com menos ainda. Homens ainda são preconceituosos e tem no DNA o impeto de querer ser dono da mulher. Isso hoje parece um absurdo, e os homens vão se adaptando, mas com tantas opções e um mundo edonista e egoista, pq se preocupar em cuidar de alguém, se eu posso usar e descartar. Não é um mundo fácil para quem é de gerações anteriores e das novas também.
ResponderExcluirteu blogger é um encanto, audacioso, informativo, e cheio de agradáveis surpresas...
ResponderExcluirsensacional amigo.
serei sua seguidora!
Abraços
Nossa, texto maravilhoso! E como escolher? Fiquei noiada a pensar...Mas, ainda escolho por não ser conservadora! Lembrei-me de alguns textos de Lispector...Lembrei também da conhecida frase de Beavoir que diz" não se nasce mulher, torna-se mulher." e acho que tenho vivido isso...com um agravante: ser mulher na pós-modernidade, nda fácil!! Maravilhosa publicação.
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