domingo, 4 de abril de 2010

ESPECIAL: ENTREVISTA PÓSTUMA COM RENATO RUSSO NA ILHA DE LOST VOL 1

Renato Russo nasceu em 1960 e partiu em 1996, aos 36 anos no apogeu de sua música Pós Punk Rock e Italiana. Assim, para celebrar com glamour hollywoodiano o cinqüentenário do imortal líder da maior banda de rock de todos os tempos, a supra-sagrada Legião Urbana, o observador se encontrou com o rebelde Trovador Solitário na Ilha de Lost (onde aparentemente tudo pode acontecer) para uma incrível entrevista póstuma exclusiva. Renato respondeu as minhas perguntas com sua inteligência genial, sua sensibilidade extrema e seu humor impecável. Não deixei passar nada e perguntei desde política, visão existencial, sexo, drogas, AIDS e até, claro, Rock'n'roll. Qualquer semelhança entre suas respostas e seus manuscritos pessoais revelados no livro Renato Russo de A a Z é mera coincidência, salvo provem o contrário. Decidi fatiar em duas partes o conteúdo dessa entrevista contendo 50 perguntas, uma para cada ano de “vida” do mito, a fim de evitar uma overdose musical no leitor. Sirvam-se, legionários!


Eu sou o Renato Russo. Eu escrevo as letras, eu canto. Nasci no dia 27 de março, eu tenho 26 anos. Sou Áries e ascendente em Peixes. Eu trabalhava com jornalismo, rádio, era professor de Inglês também e... comecei a trabalhar com 17 anos e tudo, mas só que de repente tocar rock era uma coisa que eu gostava mais de fazer. E como deu certo eu continuo fazendo isso até hoje.


Legião Urbana- Por Toda a Minha Vida



1. Thiago Castilho: Em primeiro lugar eu gostaria de dizer muito obrigado pela sua obra excepcional, profunda, versátil e medicinal. Eu tive uma adolescência selvagem a partir dos 13 anos e alguns pontos biográficos semelhantes aos seus, exceto pelo homossexualismo e as drogas, claro, mas digamos que curtir a minha epifisiólise particular. Hecce Homo: eu era assim, um menino melancólico que lia Dostoievski, angustiado, introspectivo e paradoxalmente romântico. Sua música foi minha terapia psicanalítica alternativa ao lado da poesia de Drummond e Pessoa. Vocês três formam minha santíssima trindade pessoal. Bem, vamos lá. Renato Russo por Renato Russo?


Renato Russo: Teve a idéia de formar Aborto Elétrico, que JAERA. Acabou, fim, adeus, good-bye. Continuou escrevendo e cantando músicas para quem quisesse ouvir. Sabe de cor mais de 42 músicas dos Beatles (o que não é um grande feito) e é fã incondicional dos Vigaristas de Istambul (a banda mais honesta a aparecer e, depois, desaparecer). Escreve uma peça de teatro, é professor. Todos os professores e professoras, sejam bem-vindos!'. Não gosta de dentista, filas de espera, música de elevador, nem de gente falsa e/ou sem criatividade. Gosta muito de cinema e está atualmente preocupado com boatos de que a Terceira Guerra pode começar antes que ele cumpra sua promessa de ir a Mogi das Cruzes para se encontrar com seres extraterrestres. Como todo ser humano, é falso em casos de emergência, e todos sabem que não é nem um pouco criativo. Ninguém sabe, mas foi ele quem matou Sid Vicious em 1432 a.C.


2. Thiago Castilho: O jornalista Arthur Dapieve disse que tanto ao falar de política quanto ao falar de amor, uma única linha norteava sua poética: a busca da ética perdida. Como você vê essa ética perdida?


Renato Russo: Eu acho que existe um grande confronto entre a ética e a estética. A ética, em algum momento, foi substituída pela estética. Isto é mais uma forma de controle. Eu me baseio numa ética normativa, que diz o que é certo ou errado fazer. É bom deixar claro que isso passa por uma avaliação interior, e não por uma imposição. Afinal, já se matou muita gente com essa justificativa. Assim, um engenheiro de obras sabe que não se deve poluir a Baía de Guanabara, ou o governo sabe que não podem haver pessoas passando fome. Acho que o básico, para essa avaliação, é a Declaração dos Direitos Humanos. E isso teria que partir do núcleo da sociedade, que é a família. É uma questão de educação! Porque não adianta ficar xingando o Sarney [ex-presidente José Sarney]. Na verdade, os culpados pela situação do país somos nós! Por exemplo: como a nova geração vai ter respeito pela mais velha, se essa a ataca e está cheia de preconceitos?


3. Thiago Castilho: Sua primeira banda de rock possuía um nome insólito, “Aborto Elétrico”, que foi a semente da Legião Urbana. Você pode nos revelar, por favor, qual é a origem desse nome exuberante?


Renato Russo: O nome Aborto Elétrico é justamente porque eles inventaram, em 68, os cassetetes elétricos que davam choque. Numa dessas batidas, uma menina que estava grávida, nada a ver com a história, levou uma tal daquelas cacetadas e perdeu a criança! Coisa de mau gosto! Então, Aborto Elétrico era o que representava a música da gente.


4. Thiago Castilho: Todo adolescente é um mochileiro das galáxias, por assim dizer, e no íntimo se sente um alienígena, certo? Como era o Renato adolescente?


Renato Russo: Na adolescência, você quer ser aceito. Foi uma época muito complicada para mim. Eu sabia que era sedutor e, como todo mundo, também aprendi os códigos sociais para não me machucar.


5. Thiago Castilho: Para mim com a Legião Urbana você reinventou o rock nacional, introduzindo poesia pensante e crítica político-social em seu corpo. No entanto você tinha uma postura pessoal I Don't Care (Eu não ligo), certo?


Renato Russo: Eu tinha uma postura tão contra tudo e contra todos que, se você me falasse "Não come isso que é veneno", eu chegava e comia mesmo. Eu sou ariano, eu aprendo dando cabeçadas. A minha serenidade, e até a minha própria insegurança, são um dom, porque eu sofri tanto! A questão é que eu não tinha que tomar droga coisa nenhuma, tinha que tomar na cabeça. "Sai desse canto, Renato, pára com tadinho de mim". Tadinho de mim? Foda-se! A vida é difícil mesmo. "Ah, eu sou poeta, artista..." Foda-se! Não vou ficar incomodando os meus amigos. Eu tinha uma postura rebelde, completamente idiota. Eu achava assim: "Ah, eu estou destruindo meu próprio corpo e ninguém tem nada com isso".


“Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?” Eduardo e Mônica



6. Thiago Castilho: Você nunca ocultou de ninguém sua relação problemática com as drogas. Como é o cotidiano de um depende químico?


Renato Russo: A doença [dependência química] te domina de tal maneira que você pensa que é daquele jeito, mas, na verdade, não é. É como uma depressão. Você não consegue sair daquilo, vai usando isso, aquilo, e de repente o mundo vai se fechando. Você fica agressivo sem perceber. Tudo é cinza. Você não consegue ver nada de positivo. E a vida não é nem boa, nem ruim: a vida é o que a gente faz da vida. Mas, é claro, se você vive entupindo seu corpo com toxinas... No começo, é até interessante. É o que a gente chama de lua-de-mel. Depois, é fatal. Quem é dependente químico, se não parar, morre. E, se não morrer de overdose, suicídio ou câncer no fígado, morre em acidente de carro ou coisa assim. Quem não tem esse problema acha que é frescura. Quem tem é geralmente gente muito sensível, é tudo uma gente maravilhosa que entra no buraco e não sai. Todos os poetas e escritores são alcoólatras, eles têm uma coisa a mais. Mas a verdade é que a droga não traz nada de bom para ninguém, eu é que achava que precisava de droga.


7. Thiago Castilho: Em Romeu e Julieta o refrão de um dos personagens secundários na tragédia idílica de Shakespeare é “Eu sou apenas um belo pedaço de carne.” Recentemente o norte-americano Scott Westerfeld lançou um livro chamado “Feios” em que num futuro não muito distante todos os adolescentes esperam ansiosos o aniversário de 16 anos, pois então serão submetidos a uma cirurgia plástica obrigatória que corrigirá todas as suas imperfeições físicas, transformando-os em perfeitos. O conflito se instala quando nem todos concordam com a mudança. Atualmente a moda vigente preconiza o “Capital Erótico.” Você teve problemas com a sua aparência?


Renato Russo: Eu sempre tive trauma de ser feio. Eu achava que tinha direito a ter um ponto de vista, e as pessoas riam da minha cara. E agora é: "Viu, Renato, você estava certo". Eu não sou nenhum Paulo Ricardo, nenhum James Taylor, mas eu dou lá minhas reboladinhas, e as meninas gritam"Lindo! Lindo!". Eu era magrelo, branquinho, com espinhas, e, de repente, consegui ter uma banda de rock. Por que não? O pessoal me via: "Mas ele é que é o Renato Russo?". "É, mas as letras dele são bacanas".


8. Thiago Castilho: Como era a convivência na Legião Urbana?


Renato Russo: Conviver com uma banda é superlegal. Para mim, é uma das coisas mais importantes da vida. Acho que trabalho é uma coisa muito importante. Eu tive sorte de encontrar não só o Dado e o Bonfá, mas uma equipe que acredita no que a gente faz. Eu acho o Bonfá o mais inteligente da banda, mas ele é mais caseiro. Então, fica parecendo que eu sou o mais inteligente, o mais culto. O Dado é o mais sensível. No fim das contas, cada um de nós é uma pessoa, mas, pelo fato de a gente ter trabalhado tanto tempo juntos, cada um de nós é uma parte da Legião Urbana. Nós temos muitas coisas em comum. E isso é impressionante, porque somos três pessoas completamente diferentes. Como eles são mais jovens do que eu — isso não é uma coisa que parte de mim —, às vezes eu sinto que eles se ressentem de ser essa coisa de Renato Russo, Renato Russo, Renato Russo. O vocalista aparece mais, mas, às vezes, as pessoas têm a impressão de que eu faço tudo. E eu não faço tudo, não. Têm músicas inteiras que o Dado me entrega a fita pronta, eu só coloco a letra. E as pessoas não vêem isso. Eles também não gostam muito de fazer entrevista.


9. Thiago Castilho: Qual é o perfil do público da Legião Urbana?


Renato Russo: Nosso público tem um perfil que eu acho muito bonito. São pessoas que não são racistas, não são fascistas, que buscam uma determinada ética frente ao mundo complicado que têm. Fico feliz de tentar trabalhar com o que acredito, e o que acredito passar na música. Não existe confusão.


10. Thiago Castilho: Imagino que tenha sido psicologicamente excruciante ou superpunk para você descobrir que era soro positivo. Você poderia, por favor, descrever como foi essa experiência?


Renato Russo: A Aids coloca toda e qualquer ação humana sob outro prisma. A Aids acabou com a segurança. As angústias voltaram a ser básicas. E pessoais. Pratico sexo seguro desde 1986. E acho que a doença está mais ligada a um tipo de vida desregrada. Já perdi amigos. É uma coisa brutal, terrível. Mas espero que agora, passados dez anos, a situação melhore. Esta garotada que está aí é bem mais informada.


“Veja o sol
Dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega
É da cor dos teus olhos
Castanhos...” Tempo Perdido



11. Thiago Castilho: Defina os anos 90.


Renato Russo: Não queremos ser diferentes, e, sim, que todo mundo tenha o direito de ser como é. Eu não preciso me sentir mal porque não sou igual ao garoto que está no anúncio do iogurte. É você ser sexy, charmoso, com uma certa plasticidade corpórea. Cria-se uma geração de clones. Estes são os anos 90.


12. Thiago Castilho: Drummond escreveu “O homem atrás do bigode/ é sério, simples e forte/ quase não conversa/ tem poucos raros amigos.” De tudo talvez eu não possa me queixar da amizade, sempre tive sorte com isso. Conceitue amizade.


Renato Russo: Amizade é quando você encontra uma pessoa que olha na mesma direção que você, compartilha a vida contigo e te respeita como você é. Uma pessoa com a qual você não precisa ter segredos e que goste até dos teus defeitos. Basicamente, é aquela pessoa com quem você quer compartilhar os bons momentos e os maus, também. Alguns amigos meus são os mesmos do passado e outros, não. Eu não tenho muitos, mas tenho bons amigos. Se eu contar, realmente, não devem passar de cinco. Mas têm outros.


13. Thiago Castilho: Qual é a sua conexão com o Cazuza?


Renato Russo: Eu tenho uma superligação com o Cazuza, a gente nasceu na mesma cidade, somos do mesmo signo e quase da mesma idade (Cazuza era um ano mais velho) e temos o mesmo trabalho — somos letristas e cantamos — e nós dois somos loucos. Eu não apareço tanto, mas sou muito parecido com o Cazuza. Acho que o Cazuza é superlegal. Ele viveu intensamente! Eu não tenho coragem de fazer isso. Ele levou a vida dele para além dos limites.


14. Thiago Castilho: Segundo Camões que conheci durante minha última viagem no tempo, somos destinados a amar. Você ainda acredita no 'L'amour?


Renato Russo: Depois que eu me apaixonei de verdade, e não deu muito certo, então eu não consigo mais... Eu fico esperando, putz, eu quero sentir aquilo de novo, mas aí, se começa, se o coração bate mais rápido: "Ah, eu não sei se quero isso, não". Eu acreditei durante muito tempo em amor romântico. Hoje em dia, eu não acredito em amor romântico, não. Eu acredito em respeito e amizade. De repente, sexo e tudo. Ou, então, expressão física. Mas é assim: respeito e amizade. Porque paixão, essa coisa de amor romântico mesmo, acho que traz muito sofrimento e sempre acaba. Você sofre, você fica pensando na pessoa, você não funciona direito. Ao mesmo tempo em que você descobre muitas coisas boas em você — não sei, pelo menos comigo acontece isso —, eu descubro sempre as invejas, certos ciúmes, uma certa possessividade, no meu caso, muito machista. E isso incomoda. Eu sou ciumento, possessivo, italianão. Eu acho que o amor verdadeiro não passa por isso, não.


15. Thiago Castilho: Você já tentou mulheres, por assim dizer?


Renato Russo: Minhas melhores amigas de hoje vêm de uma época em que eu estava tentando namorar garotas, para ver se deixava meus pais felizes, a sociedade feliz. Namorei mulheres belas e interessantes. Uma delas foi a Denise Bandeira — posso dizer, porque sei que ela não se importa —, aquele mulherão. Tentei, mas não deu certo comigo. Entendi que podia namorar a mulher mais bonita do mundo, mas, quando passasse um bofe atraente, com o corpo cabeludo, hummmm. Não deu, não dá.


“E João não conseguiu o que queria
Quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente que só faz...

Sofrer...” Faroeste Cabloco



16. Thiago Castilho: Recentemente você conseguiu se libertar do vício do álcool e agora você só toma milk shake, certo? Parabéns. Mas por que você acha que mergulhou nesse abismo ziguezagueante?


Renato Russo: Aquela história: bebia, porque sofria; depois, sofria, porque bebia. E bebia muito para ser aceito, para que gostassem de mim. Sentia insegurança, tomava umas doses, ficava espirituoso, virava o rei das pistas de dança.


17. Thiago Castilho: Já fumei por 2 anos compulsivamente, consegui parar, depois tive uma recaída de um ano por motivos infantis, nunca fumei por prazer, mas por influencia de amigos-chaminés ambulantes, tédio, vazio existencial, dor-de-cotovelo, estupidez. Todavia abandonei para sempre o tabaco, graças a Deus. Fumar para mim era como está com alguém que você não ama só para não está sozinho. Entende? Você parou com a bebida! E a praga do Cigarro?


Renato Russo: Cigarro é foda! Eu estou tentando parar, mas não consigo: eu adoro. Além de ser um viciado, eu gosto. Você viu como eu sou um tolo? Fumo que nem um desgraçado e, depois, fico tossindo.


18. Thiago Castilho: Como Alexandre, o Grande e não o Nardoni, você conquistou tudo, conquistou corações e mentes em larga escala e quando se foi deixou milhões de órfãos. Nasceu com o dom artístico-musical, a inteligência criativa e o vozeirão inigualável. Teve dinheiro, poder, glória, a veneração dos fãs que sempre te viram como um mito messiânico e a imortalidade porque você nunca vai morrer. Eu imagino que seja surreal senão transcendental ouvir 50.000 pessoas num estádio gritando Thiago Castilho! Thiago Castilho! Mas sempre tem a galerinha medíocre do contra, os inimigos inglórios. Já disseram que o Esconderijo era sonolento e chamaram o observador de “Comunista de merda” por causa de um pseudo-artigo que escrevi “Coágulos do Regime Militar” http://esconderijo-do-observador.blogspot.com/2009/09/normal-0-21-false-false-false.html no qual inclusive inseri uma de suas canções metafóricas mais brilhantes sobre aquele tempo de trevas. Enfim, qual é a sua crítica da crítica?


Renato Russo: Se a crítica valesse alguma coisa, a gente não teria vendido o Que País é Este em São Paulo. Saiu bem grande num jornal lá: "Legião Urbana lança disco esquálido e primitivo". Eu nunca vou me esquecer. No entanto, o crítico que escreveu isso teve que ouvir a música por mais de um ano, tocando sem parar, em todas as rádios. Eu acho que, aqui no Brasil, têm muito ranço, muita picuinha. Outro dia, o cara acabou com a Orquestra Sinfônica Brasileira de tal maneira que, depois, na seção de cartas, um leitor tentava fazer com que o crítico entendesse que um músico clássico brasileiro tem que ter dois ou mais empregos, e lutar contra Deus e o mundo, para continuar tocando dignamente. Geralmente, o que eles pegam é a cobertura do bolo, o resultado final, esquecendo-se das dificuldades. Porque você pode até fazer uma crítica apontando as falhas, mas, ao mesmo tempo, encorajando as pessoas. O que geralmente eles fazem é jogar seu ressentimento em cima das falhas das pessoas. Para mim, isto é inveja. Deve ser porque eu sou gay, maravilhoso, e não preciso ficar indo a festinhas para me promover, não sento mais no chão com os amigos fumando baseado e ouvindo Ramones. Eu fico em casa ouvindo Mozart. Foda-se a imprensa! Sou formado em Jornalismo e sei como funciona essa corja. O Caetano tem toda razão: essas bichas são danadinhas. Eu não me importo com o que a imprensa fale de mim, desde que meu disco venda. Como diz Mick Jagger: "Tanto faz o que dizem na página 93 da revista, desde que eu esteja na capa". No Brasil, este tipo de coisa é mais cruel, na medida em que as pessoas são mais ignorantes.


19. Thiago Castilho: Eu tive uma professora de Português na Faculdade de Direito que dizia espirituosamente que deviam inventar uma bomba atômica que só matasse funkeiros e pagodeiros. Quem transa música escapista não pode amar a Legião Urbana. Qualidade é o segredo do sucesso?


Renato Russo: Tem uma coisa que acontece com o meu trabalho e com o trabalho da Legião Urbana — eu não sei, talvez esteja enganado. Mas é como se tudo o que a gente faz desse certo. Então, as pessoas não se esforçam... Elas têm um jeito de trabalhar muito mais leve e solto do que eu gostaria. Comigo é sério, tem que ser a melhor coisa que já foi feita. Nunca vai ser a melhor coisa que já foi feita; a gente sempre vai ter dúvida. Mas é aquela tal história: "Ah, é Legião. Vai dar certo!". Depois, o disco vende um milhão de cópias, e tudo bem. Mas ninguém sabe pelo que a gente passou. É uma coisa que tem um pouco aqui no Rio de Janeiro, e acho que um pouco no Brasil. Ora, bolas, desde que eu tinha 8 anos de idade, a única coisa que eu queria era tocar numa banda de rock'n'roll! Eu não vou abrir mão de nada, porque é uma coisa que eu gosto de fazer. Eu não penso em vendas, eu penso num resultado de qualidade.


20. Thiago Castilho: Você insinuou numa canção (Faroeste Cabloco) que o diabo mora em Brasília, o que me permite supor que ele seja metamórfico e troque de face de quatro em quatro anos ou de oito em oito anos (risos). Qual é a diferença entre Brasília e as outras cidades brasileiras?


Renato Russo: Eu adoro Brasília. Para mim, é a melhor cidade do Brasil. Futuramente, eu quero novamente morar em Brasília. Muita gente reclama que aqui não tem nada para fazer, mas, se você procura você acha. No Rio e em São Paulo, existem mais alternativas, mas é aquele circuitozinho. Você sai do cinema e tem que se defrontar com aquele calor, com aquela poluição. Aqui, você sai da Cultura Inglesa e aspira um ar puríssimo, e pode sair por aí caminhando tranqüilamente. E existe o intercâmbio cultural com as embaixadas e com as próprias pessoas. Você encontra pessoas aqui de todos os cantos do país, de todas as profissões, com todos os backgrounds possíveis. Isso dá uma interação de relacionamento humano, emocional, que eu acho muito legal, ao contrário das grandesmetrópoles, onde hoje só existem as tribos superfechadas.


“Já não me preocupo / Se eu não sei por que
Às vezes o que eu vejo / Quase ninguém vê

E eu sei que você sabe / Quase sem querer
Que eu vejo / O mesmo que você...”
Quase sem querer



21. Thiago Castilho: Sua visão do Brasil?


Renato Russo: Aqui no Brasil, nós somos alegres, mas nós não somos felizes. Existe toda uma melancolia e uma saudade que a gente herdou dos portugueses e que a gente ainda nem começou a resolver. A gente não sabe o que é esse nosso país."Nós já cantamos o caos, a situação desesperadora do país. E, agora, o que resta? O caos continua aí. A gente não é como esses caras. Eu sou brasileiro! Esses caras não são brasileiros. Polícia que mata criança, traficante... essas pessoas assim são animais. A gente acredita no Brasil. Existem muitas coisas legais. Ficam querendo que a gente seja ladrão, que seja do jeito que eles são. Nós não somos, não. Olha, a ignorância é vizinha da maldade. Isso é batata. Mas o que está acontecendo no Brasil... Eu acho que talvez seja o último estágio... Isso vem desde o descobrimento do Brasil. Para cá vieram ladrão, louco, preso político, entendeu? Essa corja está aí até hoje. O povo, mesmo, está todo mundo ciente disso.


22. Thiago Castilho: Você acredita em “poder mudar o mundo”?


Renato Russo: Eu não sou mais tão agressivo quanto antigamente. Eu descobri que não adianta ficar batendo com a cabeça na parede, porque não vou mudar o mundo. Antigamente, eu sinceramente acreditava que eu ia poder mudar o mundo. Eu me formei em Jornalismo, eu realmente queria fazer alguma coisa por um determinado caminho. Aí, depois, eu descobri: "Olha, por aí não vai dar, Renato. É melhor você fazer outra coisa". Hoje em dia, eu acredito mais numa mudança interior. Se eu vou conseguir resolver os problemas que aparecem com a minha família, na minha vida cotidiana, as coisas que eu tenho que resolver comigo mesmo, com meu filho, com os meus pais, com os meus amigos. Acredito neste tipo de mudança, uma coisa a nível de pessoas, bem pequena mesmo. Nada de mudar o mundo, o governo, nem nada. E isso se reflete um pouco no estilo das letras. No começo, era uma coisa muito grandiosa; agora, não. A gente tenta fazer uma coisa assim: hoje é um dia perfeito com as crianças. Só. Eu não posso mais falar pelas outras pessoas. Eu só posso falar assim: hoje eu acordei bem ou acordei mal.


23. Thiago Castilho: As vezes fico feliz por você não ter visto certas coisas que aconteceram no Brasil depois que você saiu para comprar cigarros na esquina e nunca mais voltou. Eu tenho minha cueca da sorte que eu guardo para as meninas de sorte, mas o que os corruptos fizeram, esconder dinheiro em suas cuecas, foi imperdoável. E o povo, citando um velho sábio, “Só faz sofrer.” Dos políticos e das eleições, Renato?


Renato Russo: Não entendo qual o lucro que essas pessoas [os políticos] têm em ser tão idiotas. Elas também vão usar as mesmas ruas esburacadas que nós usamos. Se um dia estiver perdido em algum lugar, vai parar num hospital que não tem condições de atendimento. Você não pode se isolar. Eleições são uma coisa complicada. Traficantes e analfabetos votam. A melhor solução é a do Betinho: cada um cuidar do seu núcleo, da sua rua, em células.


24. Thiago Castilho: Eu sei que é desagradável desenterrar essa ferida cicatrizada, mas eu gostaria que você falasse um pouco sobre o tumulto ocorrido durante o show no estádio Mané Garrincha que resultou em uma morte e 385 atendimentos médicos:


Renato Russo: Eu sempre quis falar isso: não vou pedir desculpas nem perdão, mas eu gostaria de explicar que, se eu pudesse voltar no tempo, eu não faria certas coisas que fiz. No caso de Brasília, eu faria tudo de novo. Da próxima vez, ainda levava uma metralhadora giratória e matava um monte de gente... Claro que não. É brincadeira. No caso de Brasília, não faríamos o show.


25. Thiago Castilho: Certa vez o nosso querido Rauzito (Raul Seixas) disse que a solução era alugar o Brasil. E para os jovens, qual é a solução, se existe?


Renato Russo: Quem não tem uma rede embaixo não vai tentar um triplo mortal. O movimento das esquerdas nos anos 60 não deu em nada. Agora, tem que tentar um novo caminho, sem ter nenhuma saída: o povo está sem educação, sem alimentação, e a estrutura política está totalmente sem base ética. Então, fica muito difícil. Não tem modelo, não tem referencial, nem mentores que indiquem o caminho. Porque as gerações anteriores, além de estarem totalmente desiludidas, jogam toda essa desilusão nos próprios jovens. Um cara como o Ferreira Gullar dizer que a geração de roqueiros é uma geração sem caráter é de perder a confiança. O Baden Powell também falou isso. E eram pessoas que eu respeitava. Então, em quem é possível confiar? Em Caetano Veloso, mas ele está fora disso. O máximo que você pode fazer é tentar se interiorizar, buscar algo mais tribal, de sobrevivência mesmo, tanto a nível psicoemocional como intelectual, informativo, social, político, sexual, tudo.


“E nossa estória não estará pelo avesso. Assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas para contar. E, até lá, vamos viver. Temos muito ainda por fazer. Não olhe para trás. Apenas começamos. O mundo começa agora. Apenas começamos.” Metal Contra as Nuvens


Continua...


PS: Feliz Páscoa amigos!

9 comentários:

  1. Fenomenal e brilhante! Tudo é possível na ilha de Lost, cultura no seriado, ganhou dos mortos vivos, dos outros, da fumaça preta e das viagens no tempo. Não pare de escrever, assim, eu não paro de ler.
    Flávio Lucas

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