A Adão Castilho
com muito orgulho, com muito amor
O ator Lima Duarte com quem meu avô se parecia: rosto, calvície e barriga.
15 de novembro de 1990, dia da Proclamação da República Brasileira. Tenho 7 anos e estou no velório do homem que eu mais amei na vida e que mais me amou, meu avô paterno. Há um coro intolerável de indistintos gemidos femininos de dor na sala. Meu pai segura minha mão. Em instantes ele a soltará para carregar a alça de borda do ataúde de seu pai até o carro funerário. O ritual se repetirá no cemitério até a sepultura. Eu não me lembro dele ter segurado a minha mão nunca mais nem de tê-lo visto chorar naquele dia diabólico. Mas eu sei que seu coração fora quebrado para sempre.
Meu avô era um homem verdadeiramente incrível, viril, esperto, afetivo e justo. Torcia pelo sagrado Cruzeiro e não aceitava atleticano perdedor na família. Bonito, assemelhava-se fisicamente ao ator global Lima Duarte sem aquelas orelhas escandalosas do Lima Duarte que afinal ficaram para mim. Seu lazer favorito era jogar dominó com os velhos amigos e me ensinou o “jogo dos reis” que consistia simplesmente na disposição e acoplamento impecável das peças do dominó na mesa. Peão de trecho, um homem duro e mole ao mesmo tempo. Duro como homem, mole como avô. Certa vez uma vizinha recém-casada e histérica bateu em sua porta implorando socorro para o marido que estava brigando no bar da esquina e sendo nocauteado. Meu avô era respeitado no bairro pelos outros homens e como teve compaixão dá pobre infeliz apaixonada foi lá ver o que podia fazer. Resultado: levou um tiro nas costas enquanto tentava apartar a briga. Sobreviveu, mas ficou com a bala alojada no corpo. O médico avisou que tentar extraí-la poderia implicar em seqüelas irreversíveis inclusive a paraplegia. Meu avô preferiu ficar com a bala. Era perigoso demais tentar removê-la e ele tinha uma grande família dependente para sustentar. Minha avó, 3 filhas e meu pai em idade economicamente inativa. De tempos em tempos a bala parecia ziguezaguear pelo seu corpo e ele sentia muito dor. Em silencio, estóico como um espartano, deitado na cama com o braço protegendo os olhos. Passou o resto da vida sofrendo com aquela maldita bala. É por isso que, aconteça o que acontecer, deixo meus vizinhos se fuderem.
Eu me lembro de suas idiossincrasias peculiares. Gostava de tudo que poderia matá-lo. Parou de degustar altas porções de pimenta da Bahia, consumir carne gordurosa e beber tudo que contivesse álcool apenas quando o médico o informou (no pior dia da sua vida) que não tinha outra opção, ou parava com os prazeres ou morria. Ele tentou. Era tarde demais. Inalava uma tal de “buceta” para espirrar. Tinha uma espada japonesa de madeira. Quando você a tirava da bainha é que podia vislumbrar o aço. Padecia de insônia crônica e dormia no máximo 4 horas por noite. Tinha o hábito de ficar sentado num banco de pedra estrategicamente posicionado do lado de fora da casa localizada numa esquina onde transitavam muitas pessoas e carros. Meu avô era um observador do mundo. Nunca perdia o tele-jornal noturno nem o carnaval do Rio de Janeiro transmitido pela TV. Parecia se comunicar com minha avó por telepatia. Bastava um olhar seu e ela sabia precisamente o que era para ser feito e não desapontava. Seu olhar de Deus vigorava para todos. Ele era o Poderoso Chefão da família Castilho. Como não existe um Poderoso Chefão sem uma arma, tinha um revolver calibre 38 com coldre de couro marrom. Magnífico. Cultivava uma horta verdíssima de couve e cebolinhas e seu quintal era uma micro-roça onde tinha de tudo, de romã, passando por corante, pé de laranja, pé de abacate, pé de banana, figos, canas de açúcar e o que era especial para mim, o formidável Pé de Manga. Foi ali no labirinto do quintal exuberante que eu dei escondido tempos depois o meu primeiro beijo em uma de minhas graciosas primas. Não convém revelar sua identidade. Está casada, mas acho que ela nunca me esqueceu. Você me esqueceu? E como eu poderia esquecer o chiqueiro que tanto me divertiu? Meu avô criava porcos num pequeno chiqueiro onde diariamente eles depositavam uma quantidade inacreditável de excremento suíno. Asseado, fazia a higiene do chiqueiro duas vezes por dia. Eu me lembro quando os porcos eram levados para o sacrifício no fundo do quintal, a casa se transmutava num matadouro particular. O churrasco era garantido. De certa forma eu também serei um matador de porcos implacável.
Marlon Brando, ele se inspirou em meu avô para interpretar Dom Corleone, o Poderoso Chefão
Meu avô fazia todas as minhas vontades. Se eu quisesse brincar no quintal depois de ter tomado banho e já anoitecendo ele apenas olhava para minha mãe com seu olhar de Deus e dizia num tom persuasivo e autoritário ao mesmo tempo “Deixa o menino brincar, daqui a pouco ele vai embora”. E minha mãe deixava com aquele olhar de vítima que jura vingança e se minha mãe passava do olhar de ameaça para a ignorância eu lançava atrevido “Se a senhora me bater por isso eu vou contar para o vovô.” E ela parava com um sorriso sardônico e aquelas velhas interrogações que toda mãe usa em seu cotidiano “É assim que você trata a sua mãe? Sabe quantos meses eu tive que te carregar na barriga?” Graças a Deus, minha mãe o respeitava ao extremo. Ela sempre disse que eu era o neto preferido dele e que nunca conheceu um homem melhor que o meu avô “Em compensação a sua avó...” Uma família tradicional, não?
Um dia caiu uma súbita enchente
Meu avô, um macho alfa. Minha avô, uma leoa apaixonada.
Meu avô se deu para sua família, mas tinha ciência que o amor não basta. Um chefe de família precisa colecionar leões e acumular bens. Por isso trabalhou duro a vida toda e ganhou dinheiro suficiente para pelo menos legar a cada filho uma casa própria (o sonho brasileiro) além de sua propriedade, um lote em Vitória, uma conta corrente e uma pensão invulgar para minha avó. Minha avó nunca mais quis saber de outro homem embora eu seja testemunha que tenha sido cortejada por uns galantes de sua igreja protestante. Contudo meu avô era único e inigualável apesar de ser católico não praticante. E ela preferiu a solidão. É claro que meu avô tinha defeitos, contradições, fraquezas, neuroses, falsas aparências, inseguranças, segredos, pecados e arrependimentos como você, mas eu não me lembro de nenhum deles. Ele era o máximo. Sempre o reverenciarei.
"Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer." Fernando Pessoa
O Dia da Morte; pintura de William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)
Estima-se que cerca de 150.000 pessoas faleçam diariamente no mundo. Isto quer dizer mais de 50 milhões de óbitos por ano. Curiosidade: 100 bilhões de pessoas já morreram desde que surgiram os humanos. A morte alheia nos parece familiar e casuística, entretanto nada pode ser mais pessoalmente estranho e devastador. Quando meu avô se foi derrubou meu pai que passou dias numa cama bebendo e esmurrando a parede como um louco. Eu me lembro de sua mão literalmente inchada como um balão roxo e minha mãe pedindo chorando para ele parar com aquilo porque os meninos (ela, na verdade) estavam assustados. Às vezes os seres simplesmente não conseguem superar uma perda. Eles fingem continuar, mas algo dentro deles morre para sempre e o rancor se transforma numa segunda sombra. É uma conseqüência trágica de amar demais. Sempre quando sabe da noticia do falecimento de alguém, é impressionante, meu pai pergunta com uma insensibilidade brutal “Tinha mais ou menos que 52 anos?” Se tiver mais passou da hora de morrer “Meu pai morreu com 52 anos, quem são eles para viverem mais?” No Japão há um caso verídico (Virou filme com o Richard Gere, Hachi) de um cão da raça akita que foi encontrado perdido por um professor universitário na estação quando voltava do trabalho e por ele adotado. Todos os dias o cachorro ia levá-lo e buscá-lo na estação. O dono do cão morreu e ele continuou indo tentar buscá-lo na estação durante 9 anos dia após dia até o fim. No filme divinamente melancólico “Um Olhar do Paraíso” uma adolescente de 14 anos após ter sido barbaramente assassinada por um psicopata se recusa a aceitar a própria morte e ao invés de ir para o céu como tinha direito prefere vagar a esmo pelo seu imaginário mundo escapista. Eu nunca me recuperei da perda do Mundial do Cruzeiro em 97. E de que mais?
“Quando eu estava viva nunca odiei ninguém. Mas agora o ódio é tudo que eu tenho. Eu quero ele morto. Eu quero ele frio, morto e sem sangue em suas veias. Olhe para mim. Olhe para o que ele fez de mim. O que eu sou agora? A menina morta? A menina perdida? A menina que desapareceu? Eu não sou nada! ... Eu fui uma estúpida. Eu fui tão estúpida.” Um Olhar do Paraíso
Eu estava lá quando a notícia chegou. Foi o compadre do meu avô, um homem muito simples e muito alto, que a trouxe. Eu me lembro com exatidão seu gesto e suas palavras, ele retirou solenemente o chapéu caqui e disse “É comadre o compadre não resistiu...” E tudo acabou. É claro que eu era jovem demais para compreender intelectualmente a morte até porque era a primeira vez que a experimentava. Porém instintivamente eu senti a escuridão explodir e se propagar. Um desespero inaudito, eis o que sentimos quando alguém que amamos profundamente morre. Eu corri da casa do meu avô até a minha casa, abracei minha mãe e disse: “Mãe, o vô morreu.” Minha mãe ficou perplexa por alguns segundos e quando voltou a si interpelou segurando o choro “Você viu o seu pai no meio do caminho?” Uma família é como um dominó enfileirado. Se uma peça cai... Conheço pelo menos... 27 trouxas cujas mortes fariam do mundo um lugar infinitamente mais agradável. Contudo nunca entenderei porque meu avô precisou partir precocemente. Sua ausência é um vazio pesado em minha alma por tudo que poderia ser. Não o culpo. Meu avô não me abandonou, seu coração o traiu e ele quedou perante um ataque cardíaco fulminante. As vezes penso que tudo seria diferente se ele ainda estivesse aqui comigo. Certamente não teria permitido que um dia eu afundasse na piscina de areia movediça da depressão e outros conflitos que sucederam em nossa família teriam sido por ele aniquilados antes que prosperassem. As vezes um homem faz a diferença. Eis meu avô, Adão Castilho, um grande homem que fazia a diferença.
“Não precisa esperar mais. Ele não vai voltar.”
Existe uma fascinante lenda poética que diz que morrer é retornar a época mais feliz de sua vida e viver lá para sempre. Para onde eu retornaria? Boa pergunta, leitora. Não poderia ser para os braços e pernas de nenhuma mulher especial porque uma eu amei pelo mistério, outra pela inteligência, uma terceira pela beleza e a duvida me consumiria internamente. Então, penso que eu voltaria para o dia em que meu avo subiu no pé de manga de sua casa e fez chover mangas para mim. Depois recolhemos as mangas esparsas pelo terreiro e as devoramos numa manhã indelével. Eu me lembro de estar rindo com os dentes amarelos de manga de seus dentes amarelos de manga e me lembro de seu olhar eternamente tranqüilo e perfeito como talvez um dia se lembre de meu olhar meu neto. Hoje sinto como se ele dissesse para o homem que estou me tornando “Deixa o menino brincar, daqui a pouco ele vai embora”. Segundo a ciência quando uma pessoa morre, a audição é o último sentido a falecer. A morte é silencio e paz, uma inversão da vida. Tudo queima na natureza cruel exceto o puro amor sanguíneo.
THIAGO CASTILHO
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